CASINHA
Uma casinha vivia no alto da serra. Bem no alto. Quando a gente via aquela casinha, pensávamos que seria tão pequena que só caberia dentro formiguinhas.
- Gostaria de subir até lá, de ver de perto.
Quando o sol seguia para o outro lado, a casinha, repentinamente brilhava de rosa, amarelo, até que, antes de se pôr, um brilho radiante tocava docemente a chaminé. E era lindo porque um pequeno vapor fazia tremular a luz solar. E tudo parecia mágico.
- Uma estrela saiu da chaminé.
Muitas vezes a lua também dançava sobre a casinha. Tão pequena. E quando as nuvens se estendiam como lençóis alvos e tremeluzentes, enfumaçando toda a escarpa, tinha-se a nítida impressão que a casa estava no céu.
- Como podia ser assim, tão lindo?
Havia também os dias de vento, e pensava-se que a casinha sairia voando. E quando chovia com sol parecia envernizadas as suas águas. Outra vez, quando era tempestade, tinha-se medo quando relâmpagos a faziam aparecer e desaparecer.
- Se um raio caísse sobre a casa, tudo terminava.
Na primavera a cidade floria, e se podia ver dos barrancos uma mancha clara de flores,
- É algodão.
- Não é.
- Algodão doce.
- Colorido.
E se a casa fosse mal-assombrada e tivesse gente de outro mundo, gente formiga, pequenos seres que às vezes se via em debruçados na janela.
- Eles também veem a gente.
- Fantasma!
Para ir a até a casa tinha um estreito, uma passagem trilhada, bem marcada por capim cidreira. Bem embaixo, um portão com uma sineta. Dava para ver a escadinha de pedra chata, e os flancos com pequenos bancos.
Da casa se via os campos distantes emaranhados de plantações muito bem desenhadas.
- Um tapete bordado.
O curral da leiteria parecia um presépio de brinquedo. Quando passava os carroções de boi, cantando e cantando, era como se fosse uma alegria gritada, daquelas que chora e ri, que brinca tanto que sai lágrimas.
- Os bois dançam.
Também se via a escola. Uma casinha formidável. Saia fumaça das chaminés da cozinha. Fornos de pão embaralhados no vento. Um campinho de futebol tão pequeno, feito para gente bem pequena. Havia também um pomar na entrada de um bosque. Dava para imaginar um labirinto onde se perdia. O Curupira, talvez dormisse lá.
- Eu vou para a escola?
- Um dia desses quando subir e descer das árvores sozinho.
- Eu não subo em árvore nenhuma, então não vou.
- Mas é bacana. Você aprende a ler...
- Já sei um pouco.
- Poderá desenhar...
- Desenho.
- Conhecerá pessoas da sua idade.
- Não quero, eles são muito pequenos, bem mesmo.
- Como sabe?
- Eu já vi.
- Viu?
- Da janela.
- Parecem daqui, que é longe, mas eles tem o seu tamanho, um pouco mais e um pouco menos.
- Não acredito.
Dificilmente vinham à cidade, quando saíam da casinha passavam de charrete carregados pelo Bonzinho, um alazão imenso negro, alto como um mirante. Saiam nos sábados e também nos domingos.
- Vamos visitar a comadre.
Depois que enlaçavam Bonzinho, abriam a porteira do potreiro, punham as proteções e o guiavam para a garagem. Lá escovavam, enfeitavam o cavalo, e prendiam o varal. A charrete com molejos, um lindo pelego colorido, rodas altas de madeira e lastro de ferro polido.
- Bonzinho sempre sabe que vai passear.
- Sabe mesmo, morde rapadura, ganha milho, fica faceiro.
O pai fazia tranças nas crinas e na cauda, punha lá um fitinha de promessa, uma medalhinha do lado das tapadeiras, depois de tudo prontinho, segurava-se nas rédeas compridas e se realizava uma breve prece. Então, como que todos de uma vez, seguiam. Bonzinho marchava elegante fazendo tilintar as sinetas.
Passavam a plantação, desciam ao lado do curral, acenavam para os camaradas, e eles todos riam, erguendo os chapéus no ar e a dizer:
Vai Bonzinho!
Era assim, do outro lado a descida era suave com patamares leves ente riachos e regatos com pequenas cascatas. Coisa linda. E era por isso que pouco os viam, e os podiam saber de suas andanças. Poucas vezes no ano descia-se as escadas e os lances, pouco mesmo sentavam-se ao banco. Quando o faziam era no início do inverno quando a lua estalava sobre a cidade o seu véu de nuvens prateados, e quando chegava o Natal e se ia à capela, também se reuniam para ver se algo acontecia no céu estrelado nas mudanças de ano novo.
Deitava-se a chaleira quente, bebia-se chimarrão, ouvia-se histórias e ficavam madornados com as imagens que os faziam cerrar os olhos. O menino dormia entre mãe e pai.
- Quando crescer quero ter um balão e subir no céu e ver de cima, bem lá, se o mundo é pequeno. Se é do tamanho da escola.
- Subindo e subindo escola e mundo inteiro cabe na mão.
A mãe o acordou cedo naquele dia e o banhou com água morna. À mesa estava o leite quente, o pão sovado e bolo de fubá. Havia também geleias de graviola, aquela batata doce com melado escuro. O pai terminava de bater a manteiga e fritava ovos e depunha leite. Sentaram-se e ergueram um pensamento de paz, o menino ia ser mais feliz hoje. Além de brincar com o Esturdio, um cachorro vinagre, desceria as escadas para enfim, bater o portão lenhoso.
- A madrinha!
No seu primeiro dia a comadre esperava com uma fita azul e água benzida no lado de fora. Os pais ficaram, sabiam que a benção que receberia da comadre era o seu passaporte, sua passagem para outro mundo.
- Cadê o papai e a mamãe?
- Trouxe minha madrinha.
- Não vale, só mãe e pai entram aqui.
- Eu sou a madrinha dele. Sou a responsável.
- Ele não tem família.
- Por que não teria?
Fale com a direção para ver se aceitam.
- Trouxemos todos os documentos.
- Isso não é comigo, minha senhora, só cumpro ordens.
- Mas eu desejo explicar...
- Aguarde, o máximo que posso fazer no momento.
Saiu de sua voz um granido frio de gente certa:
- Próximo!
Na longa jornada de volta, viam a casinha iluminada.
Pensava o menino: Minha casa é pequenina, fica no morro, dentro moram formiguinhas.
- Sou uma formiguinha?
- Um menino.
A madrinha o levou até em casa. Pararam para colher folhas de dente de leão, e descansar na primeira jornada, depois entraram em um recanto e pegaram serralha. Sentaram-se em um dos bancos toscos para descansar.
- Olha a escola.
A madrinha, que era ainda muito moça sorriu. Ia ser professora, escrever no quadro negro, contar histórias.
Adiante, viram no descampado do gramado mentruz. Sentaram-se novamente. De lá dava para ver a capela, os bosques, as plantações.
-Tudo é muito miúdo, cabe na palma da mão.
- O mundo inteiro cabe.
Quando chegaram à soleira da porta de entrada, notou que a casa era grande, espaçada, o caramanchão de alamandas douradas, o poço coberto, a bica d’água que descia o morro e enchia imensos tonéis fazendo um riacho que seguia para o ribeirão. A porta de entrada dupla encerrada em meio as janelas imensas de par em par abertas com cinturões de cobre e aço escovado, pedras gigantescas quase escondiam os pés de aleluia.
Ele sentou-se na entrada e viu distante a vila em seu movimento. A escola lá embaixo, muito abaixo do que imaginava, pequena e sóbria, quieta, sem ninguém mais naquele horário.
O pai atendeu a madrinha tirando o chapéu:
- E então?
Ela fez um aceno singelo e entrou. O homem atarracado pôs o chapelão no menino.
- Pai, a escola é bem pequena, muito mesmo. Bem pequena.